O Mistério de Marie Rogêt

Edgard Allan Poe

L&PM POCKET

Conto; literatura norte-americana - 64 páginas

Resumo:

“O mistério de Marie Rogêt” (1842) é o segundo conto policial de Poe e o segundo caso de C. Auguste Dupin. Como já foi dito anteriormente, a história é baseada num fato real, o assassinato de Mary Cecilia Rogers. Diz-se que Poe, a exemplo de John Anderson, ex-patrão da vítima, ficou tão obcecado com o caso e sabia tantos detalhes do crime e da investigação que chegou a ser considerado suspeito na investigação, porém ambos foram totalmente ilibados por falta de provas.

O corpo de uma jovem é encontrado por pescadores boiando às margens do rio Sena em Paris. Embora não fosse a primeira vez que Marie Rogêt desaparecesse por alguns dias sem avisar, poucos dias antes dessa fatídica descoberta o segundo sumiço da moça é largamente noticiado na imprensa local e amigos da jovem e da família saíram à procura de Marie. Então um amigo é um dos primeiros a chegar à cena e reconhece a vítima de assassinato como sendo a linda Marie Rogêt. Quem é o assassino? Por que?

Considerado o pioneiro da ficção policial, Edgar Allan Poe criou o detetive C. Auguste Dupin (C. de Chevalier de l’Ordre National de la Légion d’Honner, ou seja, Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra, instituída por Napoleão Bonaparte em 1802). Dupin, além de ser o primeiro detetive da literatura, é o primeiro a usar a lógica dedutiva e métodos científicos para solucionar os seus casos. O personagem icônico abriu caminho para outros detetives do universo do gênero policial, por exemplo, o famoso detetive Sherlock Holmes (1887), personagem de romances e contos do médico e escritor escocês Arthur Ignacius Conan Doyle (1859-1930); Hercule Poirot (1920), detetive protagonista de vários livros da britânica Agatha Christi (1890-1976); Mandrake (1983), advogado com vocação de detetive do escritor brasileiro José Rubem Fonseca (1925-2020); Fredrika Bergman (2009) a burocrata que se revela uma excelente detetive nos livros da cientista política sueca Kristina Ohlsson (1979-); entre tantos outros.

C. Auguste Dupin é o protagonista de três contos de Edgar Allan Poe: “Os assassinatos na Rua Morgue” (1841), “O mistério de Marie Rogêt” (1842) e “A carta roubada” (1844). A exemplo do criador, o personagem teve uma vida muito breve (1841-1844) uma vez que só apareceu nesses três contos, nada mais. Porém foi o suficiente para impressionar e inspirar vários outros autores e seus métodos analítico, científico e investigativo serviram como base para técnicas desenvolvidas até hoje pela Scotland Yard (ou New Scotland Yard) e pelo FBI, por exemplo.

Vamos conhecer um pouco deste segundo e polêmico conto policial e o segundo caso deste famoso e excêntrico personagem? “O mistério de Marie Rogêt” (1842) foi publicado pela primeira vez, dividido em três partes (novembro e dezembro de 1842 e fevereiro de 1843), na “Snowden’s Ladies Companion” revista nova-iorquina de prestígio à época1. Foi a primeira obra de literatura baseada num fato real, no assassinato de Mary Cecilia Rogers, uma jovem mulher de 20 anos, cujo cadáver foi encontrado por pescadores no rio Hudson, Nova Iorque, em julho de 1841, três dias após ter sido dada como desaparecida pela mãe e pelo noivo2.

Antes, porém, de seguir com a resenha do conto, a pergunta que não quer calar: afinal, quem era Mary Rogers? Por que a morte de uma jovem de origem tão humilde impactou uma cidade com mais de 300.000 habitantes e desapertou tanto interesse da imprensa de Nova Iorque?

Em 1840 Mary Cecilia Rogers, a única filha da viúva Phoebe Rogers dona de uma pensão perto da ponte do Brooklyn, passou a ser conhecida como “A linda garota dos charutos”, que trabalhava como balconista na famosa loja de charutos “Anderson’s Tobacco Emporium” de propriedade de John Anderson. A beleza exuberante e a graciosidade genuína da jovem causavam tanto efeito que a jovem era conhecida por todos, mesmo nos círculos mais privilegiados da sociedade, embora a jovem fosse de origem muito humilde. Logo a jovem passou a estampar a capa de vários jornais, inclusive os de mais prestígio. Muitos atribuem a contratação da beldade como uma jogada de marketing de Anderson.

Apesar do assédio “velado” de muitos e até de investidas mais audaciosas de alguns jovens mais impetuosos o comportamento da jovem beldade era irrepreensível. Porém no início de 1841, aproximadamente 10 meses após ter sido contratada por John Anderson, Mary não compareceu ao trabalho sem qualquer aviso prévio ao patrão e à mãe e despareceu por alguns dias. A notoriedade de Mary era tamanha que logo o sumiço da jovem foi noticiado na imprensa. Contudo alguns dias depois de ser dada como desparecida a jovem voltou ao trabalho sem grande alarde e alegou que havia ido visitar alguns amigos, embora tenha sido vista passeando pela cidade acompanhada de um vistoso e bonito oficial da Marinha. Logo depois do acontecimento, Mary pediu demissão e voltou a morar na pensão de sua mãe.

Seis meses após ter desaparecido por alguns dias sem ter dado muitas explicações Mary Rogers avisou ao noivo, Daniel Payne, que iria passar o dia com sua tia a Sra. Downing, mas novamente Mary não voltou para casa e Daniel descobre que sequer sua noiva havia ido à casa da tia. Então, onde estaria Mary Rogers? Logo a ausência de Mary é noticiada e dessa vez o alvoroço foi ainda maior do que da primeira vez. Após três dias sem qualquer notícia da bela jovem foi encontrado um corpo já em estado de decomposição de uma mulher jovem que logo depois se confirmou ser da bela Mary Cecilia Rogers e que ela havia sido severamente estuprada e espancada. Que loucura!!! Quem teria cometido tal atrocidade? Teria sido o ataque de uma gangue e um estupro coletivo? Teria sido o noivo atormentado por ciúme? A própria mãe? Teria sido uma fatalidade após um aborto malsucedido? A Sra. Phoebe Rogers (mãe), Daniel Payne (noivo) e John Anderson (ex-patrão) foram imediatamente considerados suspeitos. Porém todos tiveram seus álibis confirmados e foram logo liberados. Não foram encontrados outros suspeitos e aos poucos o caso foi perdendo força. Alguns meses depois Daniel Payne cometeu o suicídio e o assassinato de um homem chamado Samuel Adams ocupou o espaço das manchetes nos jornais. Apesar da obsessão de John Anderson pela solução do assassinato da bela jovem, na vida real o crime nunca teve desfecho.

Agora, feita a contextualização, é hora de voltar ao conto de Edgar Allan Poe. Vamos ao “O mistério de Marie Rogêt”? AVISO: qualquer semelhança com a realidade NÃO é mera coincidência.

O corpo de uma jovem é encontrado por pescadores boiando às margens do rio Sena em Paris. De quem seria o corpo? Embora não fosse a primeira vez que Marie Rogêt desaparecesse por alguns dias sem avisar, poucos dias antes dessa fatídica descoberta o segundo sumiço da moça é largamente noticiado na imprensa local e amigos da jovem e da família saíram à procura de Marie. Então um dos primeiros a chegar à cena é o Sr. Beauvais (Alfred Crommelin), pensionista da Sra. Estelle Rogêt (Phoebe Rogers) e ex-pretendente de Marie. Após alguma hesitação Beauvais reconhece a vítima de assassinato como sendo a linda Marie Rogêt e estranhamente ordena que o corpo seja enterrado ali mesmo, sem cumprir os trâmites formais. O assunto foi momentaneamente abafado, no entanto um jornal semanal trouxe o assunto à baila forçando dessa forma que o corpo fosse exumado, reconhecido pela Sra. Rogers e devidamente investigado.

A linda e popular jovem Marie Rogêt trabalhava no Palais Royal, perfumaria de propriedade do Sr. Le Blanc (John Anderson). A comoção em torno do crime era tanta que vários suspeitos foram detidos, mas logo liberados. Inclusive Jacques St. Eustache (Daniel Payne), o noivo, era o principal suspeito, mas não ficou preso, pois conseguiu confirmar todos os seus passos naquele domingo que a bela jovem sumiu. A dificuldade de a polícia encontrar a solução do caso começou a dar lugar a muitos rumores, a muitas hipóteses, algumas muito mirabolantes. Mas o que realmente teria acontecido àquela linda jovem?

Diante de tal impasse Monsieur G., o chefe de polícia parisiense, resolveu procurar C. Auguste Dupin e seu amigo, visto que a ajuda dos dois foi muito valiosa na solução dos dois assassinatos na Rua Morgue uns anos antes. É então que Monsieur G., vai ao encontro dos dois no início de uma tarde de verão de 18–. Por mais incrível que possa parecer, os dois estavam tão absortos em suas pesquisas que estavam totalmente alheios aos últimos acontecimentos porque há mais de um mês não saiam de casa nem recebiam visitas e sequer tinham lido jornais. Então Monsieur G. expõe a situação aos dois e admitindo o desânimo e diante da possibilidade de fracasso na solução do mediático crime, faz uma proposta a Dupin que se presume ser bastante generosa e que foi imediatamente aceita pelo detetive. Infelizmente o teor da proposta não foi revelado aos leitores.

No dia seguinte o amigo de Dupin, o narrador-personagem, providencia o relatório na delegacia e também um levantamento minucioso de todos os artigos publicados nos vários jornais desde a primeira até a mais recente notícia. Embora o desaparecimento da jovem fosse um fato, cada jornal seguiu uma suposição diferente. Um jornal punha em dúvida que o cadáver fosse mesmo de Marie Rogêt. Já outro alegava que o corpo não viria à tona somente após dois/três dias na água, portanto o crime poderia ter acontecido em outro lugar e ter sido colocado ali propositadamente. Afinal, como uma jovem tão conhecida por todos poderia ter atravessado a cidade sem ter sido visto por quem quer que fosse?

Entretanto, no meio de tanta controvérsia, surge um fato novo e “bombástico”: dois meninos que brincavam num bosque próximo às margens do rio encontraram peças de vestimenta femininas colocadas sobre uma pedra. Não havia dúvida que pertenciam à Marie Rogêt. Logo se confirmou que a morte realmente aconteceu no outro lado da cidade.

A partir daí vários fatos novos e importantes começaram a surgir. Os meninos que encontraram as roupas da jovem assassinada eram filhos da Sra. Deluc, dona de uma pensão à beira de uma estrada perto da margem oposta ao Barrière du Roule, local próximo à suposta cena do crime. Para espanto de todos a Sra. Deluc afirmou que aquelas roupas pertenciam à jovem que chegou à pensão à tarde acompanhada de um jovem de tez morena e lá permaneceram por algumas horas naquele domingo que ela supostamente estaria visitando a sua tia na Rue de Drômes. Mais tarde saíram em direção a um bosque próximo. Assim que o casal deixou a pensão alguns jovens arruaceiros entraram lá, comeram e beberam sem nada pagar por isso e ao sair tomaram a mesma direção que anteriormente o casal havia tomado. Mais tarde os rapazes voltaram à pensão e depois cruzaram o rio apressadamente. A Sra. Deluc confirmou ainda que ela e o filho mais velho ouviram gritos de uma mulher bem próximos à pensão no início da noite daquele fatídico dia. Valence, o motorista de ônibus que conhecia Marie também confirmou ter visto o casal atravessar o rio Sena de balsa naquele domingo.

Detalhe, a Sra. Deluc afirma que os rapazes cruzaram o rio apressadamente ao entardecer e ouviu os gritos de uma mulher no início da noite. Ora, se os gritos foram ouvidos depois dos jovens terem cruzado o rio, como poderia ser o grupo responsabilizado pelo violento crime?

Logo após tão importantes descobertas mais uma trágica notícia começou a circular, St. Eustache, noivo de Marie, cometera o suicídio por láudano no mesmo local onde supostamente o horror de Marie tivera acontecido.

O caso que inicialmente parecia de solução simples tornava-se cada vez mais intrincado. Onde está o homem de pele morena que foi visto por várias pessoas em companhia de Marie? Teria sido assassinado também? Então onde está o seu corpo? Se ainda estivesse vivo seria, portanto, a única testemunha do crime. Então porque não apareceu para denunciar os assassinos? Considerando-se a tez morena, poderia ser um marinheiro? Ou talvez um oficial da Marinha visto a boa fama da moça. Considerando-se ainda que no primeiro desaparecimento Marie também fora vista em companhia de um oficial da Marinha, porque a polícia não procurou a Marinha para ajudar na descoberta da identidade do acompanhante de Marie?

Teria sido o corpo de Marie jogado de um barco? Do mesmo barco que fora resgatado pelo balseiro no dia seguinte ao sumiço da moça e que fora surrupiado das docas alfandegárias sem o leme antes mesmo da descoberta do cadáver? Onde teria sido deixado o leme? Estratégia ou desleixo?

E porque não foram averiguadas as várias denúncias anônimas enviadas a um jornal que sugeriam que o crime teria sido cometido por uma gangue de vândalos? Teriam sido todas enviadas pela mesma pessoa?

Dupin analisa minuciosamente todas as informações e chega à conclusão. […]. “O barco nos conduzirá, com uma rapidez surpreendente, àquele que o utilizou à meia-noite do fatal domingo. As corroborações se somarão umas às outras, e o assassino será encontrado.” (C. Auguste Dupin, pág. 58).

Mais uma vez Dupin tem êxito na elucidação de um crime utilizando a lógica dedutiva. Além de ajudar Monsier G.e receber uma generosa recompensa, consegue indiretamente pôr fim ao sofrimento da Sra. Rogêt.

“O mistério de Marie Rogêt” (1842) é o segundo conto policial de Poe e o segundo caso de C. Auguste Dupin. Como já foi dito anteriormente, a história é baseada num fato real. Diz-se que Poe, a exemplo de John Anderson, ficou tão obcecado com o caso e sabia tantos detalhes do crime e da investigação que chegou a ser considerado suspeito na investigação, porém foi totalmente ilibado por falta de provas.

1 VILAÇO, F. de L. “The mystery of Marie Rogêt” by Edgar Allan Poe: literature and society in the United States in the 19th century. Itinerários, Araraquara, n.37, p.111-122, Jul./Dez., 2013;

2 Idem.

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